Rodrigo Craveiro
Publicação: 17/12/2011 08:57 Atualização: 17/12/2011 09:09
Artigo original
A Igreja Católica holandesa recorreu ao perdão, um dos pilares de sua doutrina, para tentar se redimir ante um escândalo de proporções assustadoras. “Os bispos e diretores da Conferência Religiosa Holandesa estão chocados pelo abuso sexual de menores. Eles nos enchem de vergonha e desgosto. Os agressores não são os únicos culpados. As autoridades da Igreja não agiram de forma correta e não deram prioridade aos interesses e aos cuidados das vítimas. Nós lamentamos profundamente esse abuso”, afirmou a entidade, por meio de um comunicado à imprensa, no qual ofereceu “desculpas de todo o coração”. Horas antes, um relatório divulgado por uma comissão de investigação independente revelou que entre 10 mil e 20 mil crianças sofreram abusos em orfanatos católicos, internatos e seminários, entre 1945 e 2010 (leia quadro). “Várias dezenas de milhares de menores foram submetidos a formas leves, graves e muito graves de comportamento sexual inapropriado por parte da Igreja Católica”, acusa a comissão, que citou “muitos milhares” de casos de estupro. O arcebispo Wim Eijk explicou que a Igreja pretende indenizar cada vítima com valores que variam de US$ 6,5 mil a US$ 130 mil.
Mas o arrependimento da Igreja não será o bastante para reparar o trauma e cicatrizar as feridas de milhares de vítimas. “As desculpas da Igreja Católica nada significam para mim. Eles (os religiosos) nunca se deram o trabalho de descobrir, em uma conversa pessoal, vinda do coração, o que o abuso significou para minha vida”, desabafou ao Correio, por e-mail, o holandês Ton Leerschool, cofundador da organização Stichting Mannenhulpverlening, que presta ajuda a homens que sofreram abuso sexual. “A Igreja deveria humildemente perguntar aos sobreviventes, um a um, o que ela pode fazer para diminuir a dor causada pelo crime”, acrescentou.
Leerschool contou que foi abusado aos 13 anos, em um internato no sul da Holanda. “O agressor era meu professor, meu técnico, uma espécie de ‘pai’”, lembra. “O abuso começou após um acidente na escola. Eu fraturei meu cóccix e o padre aplicava um creme no local, três vezes ao dia. Na primeira vez, ele mudou a conversa para o campo da sexualidade e me fez sentar em seu colo. Masturbou-me e me obrigou a fazer o mesmo com ele”, acrescenta. O abuso durou um ano e, mesmo curado da lesão, o menino era forçado a ir à cama do sacerdote. O diretor da escola repreendeu o aluno, chamando-o de “garoto sujo” e acusando-o de “seduzir” o padre. “Minha mulher foi a primeira pessoa com quem falei sobre isso, em 2003, depois de 37 anos”, disse. Para Leerschool, o número real de crianças abusadas deve variar de 50 mil a 100 mil.
Silêncio
Por telefone, a norte-americana Barbara Blaine — presidente da Rede de Sobreviventes Abusados por Padres (Snap) — acusou o Vaticano de priorizar a reputação do clero e não a proteção das crianças. “Todas as vezes em que há investigações, os nomes dos agressores são entregues à polícia, mas a cúpula da Igreja acaba por transferi-los para outros locais, onde podem continuar a abusar mais menores”, declarou. Ela atacou as indenizações irrisórias propostas pela Igreja e a política de silêncio em relação aos abusos.
A comissão de investigação holandesa considerou a Igreja culpada de “supervisão e ação inadequadas”. “A Igreja Católica tinha uma cultura de não lavar roupa suja em público. Ela sabia o que acontecia e tentou abafar o problema, mas não funcionou”, afirmou Wim Deetman, ex-ministro da Educação e responsável pelo inquérito. Com 28% de católicos, a Holanda foi criticada pelo relatório da equipe de Deetman. “O abuso sexual de menores está disseminado na sociedade holandesa”, alerta o documento de 1,1 mil páginas. Nos últimos 40 anos, uma em cada cinco crianças holandesas foi molestada.
Mais atenção aos jovens
O papa Bento XVI pediu à comunidade internacional que dê atenção especial à “frustração” dos jovens devido à crise que angustia as sociedades modernas. “Prestar atenção ao mundo juvenil, saber ouvi-lo e valorizá-lo não é só uma oportunidade, mas um dever primário de toda a sociedade para a construção de um futuro de justiça e de paz”, escreveu o pontífice, em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, divulgada ontem.
Fé e horror
Conclusões do inquérito sobre pedofilia na Igreja Católica da Holanda:
» Crianças abusadas
Entre 10 mil e 20 mil
» Locais dos crimes
Orfanatos, internatos e seminários
» Período
Entre 1945 e 2010
» Tipos de abusos
A maioria dos casos envolve abusos leves a moderados, como toques inapropriados. No entanto, há “muitos milhares” de exemplos de estupros
» A investigação
O inquérito foi iniciado, em 2010, por duas entidades católicas, a Conferência dos Bispos e a Conferência Religiosa Holandesa. As denúncias envolvendo padres pedófilos na Bélgica, Irlanda, Alemanha, Austrália, Canadá e EUA levaram à investigação na Holanda
» Padres agressores identificados
Cerca de 800 foram apontados pelas vítimas, com a ajuda de retratos falados. Do total, 105 estariam vivos e alguns ainda estariam no sacerdócio